segunda-feira, 30 de julho de 2012

Quem direciona o olhar é o coração


O problema de ter dois blogs é este: existem histórias que fazem parte da minha poesia cotidiana e ao mesmo tempo retratam olhares... Na dúvida resolvi publicar nos dois. Esta história fala de olhar, de olhar para a vida com outros olhos, que é o objetivo de “Histórias e Olhares”. E também vem carregada do meu olhar de mãe. Mas acima de tudo é um olhar de orgulho, carinho e admiração por uma amiga guerreira. 
Juro que não pensei que ela tivesse toda essa força. Chorei quando recebi a notícia de que ela teria que enfrentar um linfoma. Meu irmão já enfrentou esta luta (a história dele pode ser lida aqui) e sei que é uma barra pesadíssima. Por mais que o linfoma seja um dos tumores com melhor prognóstico, é um câncer e há que se enfrentar a quimioterapia.
Uma vez fui visitá-la no início do tratamento e conversamos sobre a inevitável queda de cabelo. Contou-me que não tinha vontade de usar peruca, que iria assumir a careca. Acabou aderindo às perucas para evitar o olhar de pena que a maioria das pessoas dirige para quem está enfrentando uma quimioterapia. O olhar de pena sempre é arrasador e o que mais se precisa nessas horas é coragem e esperança. Foi duro vê-la careca pela primeira vez, no meu consultório optométrico, só nós duas, mas acho que consegui segurar a onda.
A pior parte do tratamento já terminou. Por mais dois anos terá que tomar um medicamento de controle, mas não tem mais quimioterapia. O cabelo dela já começou a crescer, ainda está bem curtinho, mas já está cheio. Agora ela não usa mais peruca. E está linda assim!
Ontem fomos almoçar na casa dela, Helena – minha filha – e eu. Em determinado momento foram as duas até o quarto, fiquei na sala. De repente aparecem rindo: Helena estava com uma das perucas compradas especialmente para enfrentar o período da quimioterapia. Aquilo virou uma gostosa brincadeira. Todos experimentamos as perucas – até o pai da minha amiga entrou na onda. Mais uma vez tive que conter o choro. Mas fiz questão de fotografar a cena. Helena sabe que minha amiga esteve doente, não sabe e não entende o que de fato aconteceu. Mas a foto foi feita e, quando Helena crescer e conseguir entender, terei o maior orgulho de mostrar a ela como alguém pode transformar em brinquedo um objeto muito significativo de uma parte bastante sofrida da própria história!
Muito obrigada, minha linda amiga, por me proporcionar uma cena de tamanha beleza! Nunca vou esquecê-la! Muito obrigada por me dar oportunidade de contar essa história de superação para minha filhota! Muito obrigada por me ensinar a olhar para aquela peruca como um troféu de uma batalha que venceste!

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O olhar da mente - Oliver Sacks

Depois de ficar cega na casa dos quarenta, Arlene Gordon descobriu que a linguagem e a descrição eram cada vez mais importantes, pois estimulavam sua capacidade de lidar com imagens mentais mais do que antes, e, em certo sentido, permitiam-lhe ver. "Adoro viajar", ela me diz. "Eu vi Veneza quando estive lá". Ela explicou que seus companheiros de viagem descreviam os lugares, e ela então construía uma imagem mental baseada nos detalhes que eles lhe forneciam, em suas leituras e em suas próprias memórias visuais. "Pessoas que veem têm prazer em viajar comigo", ela comentou. "Faço perguntas, e elas então veem coisas que, se não fosse por mim, passariam despercebidas. É tão comum pessoas que têm visão não verem nada! É um processo recíproco - enriquecemos mutuamente os nossos mundos".

Temos aqui um paradoxo - delicioso - que não consigo resolver: se de fato existe uma diferença fundamental entre a vivência e a descrição, entre o conhecimento mediado do mundo, por que então a linguagem é tão poderosa? A linguagem, a mais humana das invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não deveria ser possível. Pode permitir a todos nós, inclusive os cegos congênitos, ver com os olhos de outra pessoa.

Trecho do livro "O olhar da mente", de Oliver Sacks, um pouco daquilo em que acredito quando ouço e posteriormente escrevo as histórias dos meus pacientes: a tentativa de olhar para a vida com os olhos de outras pessoas!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

domingo, 1 de julho de 2012

Um olhar para a Optometria – Quando minha história encontra Dona Maria


Cada vez mais me apaixono por minha profissão. Profissão que talvez eu nem possa exercer... Sou optometrista formada em curso superior no ano de 2004 e desde então luto pelo direito de poder trabalhar. Muitos médicos oftalmologistas dizem que eu quero executar uma atividade profissional que só compete a eles. Alguns chegam ao cúmulo de chamarem a mim e a meus colegas de “falsos médicos”. Deveriam passar um tempo na Europa, nos Estados Unidos ou na Colômbia para ver o que é realmente a Optometria, ou pelo menos consultar os documentos da Organização Mundial de Saúde que reconhece nossa profissão. Alguns médicos brasileiros acham que podem mais do que o mundo! Não quero ser médica e sei exatamente até onde vai o meu trabalho!
De vez em quando saio da minha cidade – Florianópolis – e vou atender em Jaraguá do Sul, no consultório de um colega que está se especializando em Optometria Comportamental. Quando isso acontece, saio de casa às cinco horas da manhã e pego a estrada dirigindo meu valente Clio vermelho. Faz pouco tempo que descobri o prazer de dirigir na estrada, morria de medo, pânico mesmo, até que me apaixonei por um homem que mora a trezentos e cinquenta quilômetros de distância da minha casa... Não tem jeito, para namorar tenho que enfrentar a BR serra acima! Ainda tenho medo, ainda saio de casa pensando que poderei não voltar... Mas meu namorado me disse que ninguém morre antes da hora... E eu acreditei! E aí comecei a encarar o medo e até a gostar dessa adrenalina.
Rumo a Jaraguá do Sul, o dia começando, ouvindo Marina de La Riva cantar “Ojos Malignos” no rádio do carro, às seis horas da manhã, um pouco antes de passar por Itapema, vi uma paisagem tão maravilhosa que uma sensação enorme de prazer percorreu todos os meus neurônios, cada pedacinho do meu corpo, me senti em transe... Um prazer solitário, delicioso... Vi os contornos de dois morros começando a contrastar com o céu que pouco a pouco clareava e duas estrelas enormes e brilhantes. Agradeci (a Deus, à Natureza, à Vida, ou seja lá que nome se queira dar a esta força que nos move e faz o mundo girar) por ter olhos e ouvidos sadios que me permitem misturar sensações que me fazem acreditar que viver vale a pena.
E aí lembrei da Dona Maria, uma senhora linda cujos cabelos o tempo se encarregou de branquear, que eu atendera no dia anterior, num dos locais onde trabalho:
- Quero fazer óculos para enxergar longe, não estou conseguindo mais definir o rosto das pessoas quando elas estão meio distantes. Perto até que eu enxergo bem, gosto de jogar baralho e consigo enxergar as cartas. Cruzes! É até pecado dizer que eu não enxergo, eu enxergo, mas acho que podia ficar melhor.
- E a saúde geral, como está, Dona Maria, tudo bem? Tem algum problema como pressão alta ou diabetes?
- Ah, eu sou diabética...
- E faz algum controle alimentar ou com medicamento?
- Não faço não, minha filha, eu vou morrer de qualquer jeito, comendo ou não... Então eu como mesmo, tudo o que quero, não passo vontade não!
A filha dela que estava junto na consulta e até então não havia interferido resolveu falar. Relatou que a mãe não se cuida, que há alguns anos quiseram lhe operar os olhos (não soube especificar o motivo da cirurgia), mas ela e os irmãos não autorizaram por medo já que a mãe é portadora de diabetes. Dona Maria confessou que fez exames há pouco mais de um mês, mas o resultado estava no fundo de uma gaveta, sem nem ser aberto:
- É difícil conseguir médico e eu sou relaxada mesmo, poderia ter levado numa farmácia pelo menos, né?
Examinei-a e descobri uma opacificação no cristalino, estava aí o motivo da cirurgia que elas não souberam especificar. Não vou dizer o que significa uma opacificação no cristalino porque os médicos podem querer dizer que estou diagnosticando alguma coisa, mas esse significado pode ser facilmente acessado com uma busca rápida no “Doutor Google”. Isto compromete bastante a visão. Detectei também a presença de dioptria negativa, que provavelmente está relacionada com as altas taxas de açúcar no sangue. Não dava para prescrever óculos, pois quando a diabetes não está sob controle a visão oscila muito – as altas taxas de açúcar no sangue modificam o índice de refração do cristalino e o grau de hoje pode não valer nada amanhã.
Expliquei para Dona Maria que não poderia dar óculos a ela enquanto não estivesse controlando a doença. Falei da importância desse cuidado e que ela precisava ir ao posto de saúde e insistir para que o médico analisasse o seu exame, que deveria procurar um oftalmologista para solucionar a opacificação no cristalino depois que estivesse com a diabetes sob controle e só então ela poderia fazer os óculos.
Dona Maria tem razão: morrer todo mundo vai morrer mesmo. Entretanto, enquanto vivermos temos o direito da qualidade de vida! De que adianta viver sem enxergar direito e com uma série de problemas decorrentes da doença?
Ela entendeu, agradeceu, me beijou, me abraçou, elogiou meu trabalho. Eu não solucionei o “motivo principal da consulta”, que eram os óculos que ela queria para enxergar longe, mas cumpri meu trabalho, sim, pois também é papel do optometrista a conscientização! Não somos médicos, mas somos sim profissionais da saúde. Terminei o atendimento feliz e completamente consciente de que nunca quis exercer a medicina! Agora um juiz vai decidir se eu posso ou não ser optometrista. Tomara que ele entenda que o meu trabalho não tem nada a ver com a função do oftalmologista e me dê o direito de exercer com plenitude a profissão que escolhi.