segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Sobre o carinho


 Quadro "Tem Tainha na Ilha" de Rodrigo Pereira



Seu João traz no rosto as estradas traçadas pela intransigência do tempo, pela rigidez da vida, pela labuta sob o sol e sobre a água salgada; profundos sulcos...

Chegou de muletas, acompanhado pela filha. Sessenta e dois anos marcados no corpo como se fossem mais, bem mais, uns quinze mais, talvez... Não contou muitos detalhes da sua história. Disse apenas que é morador da Praia da Pinheira, pescador aposentado, fato que talvez explique a catarata precoce.

No olhar quase sem brilho trazia a esperança de encontrar solução para o seu problema:

- Eu vim aqui para ver se consegues me fazer enxergar da vista direita! Não enxergo nada com ela!

- O médico falou que era para o pai operar esse olho, mas ele não quer... - entregou a filha.

(Esses dias li um artigo na revista Saúde que falava sobre a importância de os idosos irem às consultas acompanhados por um familiar: "'Isso é positivo se levarmos em consideração que muitas pessoas mais velhas não conseguem dar todas as informações importantes ao clínico e às vezes não se dão conta de alguns problemas que podem ser percebidos por um familiar', avalia o geriatra Omar Jaluul, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo".)

- Me conta direito essa, história, Seu João! - pedi.

- Eu tinha catarata nas duas vistas, operei a esquerda, com ela enxergo bem, com direita não enxergo nada, acho que ela está começando a atrapalhar a esquerda, corre muita água do meu olho! Mas eu não quero operar não!

- Por que não, Seu João?

- Por que não? Já viu o tamanho da "gulha" que eles usam para dar anestesia? É uma "gulha" enorme! Não quero não!

Seu João tem medo de agulha! Olhei para a filha e brinquei:

- Imagina se tivesse que ganhar filho, né?

Ela riu e concordou comigo, ele retrucou, coberto de razão:

- Não! Cada um com a sua dor! Cada um sabe de si!

Examinei-o. Realmente, o cristalino direito estava completamente opaco, sem chance de a imagem chegar à retina...

- É, Seu João, não tem jeito não! Infelizmente eu não posso fazer nada para melhorar a visão deste olho! Só a cirurgia mesmo é que vai resolver! O senhor tem que procurar um oftalmologista e operar!

Alterei um pouco o grau que estava usando no olho bom, com o objetivo de amenizar os sintomas que vinha apresentando - o cansaço visual e o lacrimejamento). Ele ficou triste por não haver solução que não a cirurgia para catarata, mesmo assim me agradeceu com um carinho sem tamanho, decidido a não operar! 

Quando a menina que me auxilia entrou no consultório para acompanhá-los até a saída, surpreendeu-nos no exato momento em que ele beijava minha mão:

- O que é isso, Seu João? O senhor sabe de pode beijar a mão dela assim? O senhor é danado, hein? Traz a filha e não traz a mulher só pra poder beijar, né?

Todos rimos!

- Pode beijar sim, Seu João! Um carinho assim é sempre bom! - e por fim beijei-lhe a mão também!

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