Arrumei um trabalho novo, no outro lado da cidade, distante trinta e cinco quilômetros de casa. Meu primeiro dia foi todo atrapalhado. Estava contando que minha mãe poderia ficar com minha filha, o que não foi possível. Precisei deixar meu rebento na casa do pai, o que aumentou consideravelmente o meu trajeto.
Ao sair de casa lembrei que este consultório novo possuia apenas um projetor de optotipos (um aparelho que projeta letras, números e desenhos e dá a informação da acuidade visual, ou seja, é um aparelho que possibilita quantificar a visão). No carro estava minha caixa de provas (uma maleta cheia de lentes) e a armação. Estava faltando o retinoscópio - equipamento com o qual se pode analisar o comportamento da luz dentro do olho do paciente e assim determinar se é míope, hipermétrope ou astigmata, bem como os valores aproximados das lentes que necessita - que estava no meu consultório, bem longe da casa do pai de minha filha e do trabalho novo.
Olhei o relógio. Percebi que tinha duas opções: ou chegava atrasada no primeiro dia ou ia sem equipamento. Com a cara e a coragem fui sem equipamento. O trabalho seria um pouco mais demorado, mas eu conseguiria chegar ao mesmo resultado.
Com algum domínio de óptica fisiológica e dos recursos do projetor é possível saber se o paciente é míope, hipermétrope ou astigmata:
Primeiro recurso: o "dial", que é a imagem de um relógio ou transferidor - se o paciente enxergar todos raios com a mesma nitidez não possui astigmatismo, se identificar raios com maior nitidez é porque existe astigmatismo. O raio mais nítido determina o eixo (ou a posição) deste astigmatismo. Isso porque o astigmatismo trata-se da existência de diferentes "graus" numa mesma estrutura ocular (geralmente a córnea, mas pode ser também o cristalino). O meridiano com menor "grau" é o que possui maior nitidez. Compensa-se o astigmatismo acrescentando lentes cilíndricas até que o paciente enxergue todos os ponteiros com a mesma nitidez.
Segundo recurso: o teste bicromático, que é a projeção de letras sobre um fundo verde e outro vermelho. Sabe-se que a luz vermelha tem um comprimento de onda maior, o que facilita a visão do míope, que também possui o olho mais comprido. A luz verde tem um comprimento de onda menor, o que facilita a visão do hipermétrope, que possui o olho mais curto. Portanto, se o paciente enxerga melhor sobre o fundo vermelho acrescenta-se lentes negativas até que observe que a nitidez se iguala no verde e no vermelho. Quando o paciente enxerga melhor sobre o fundo verde acrescenta-se lentes positivas até o equilíbrio entre as cores.
Quando contei a façanha para um amigo, ele perguntou espantado, como se eu estivesse praticando bruxaria:
- Que isso? Mágica?
- Não. É física, - respondi - é pura física!
Mas não é só física, é uma mistura de conhecimento técnico, escuta, sensibilidade e paciência, exercício diário. Experiência que só se domina com a prática, com erros e acertos. Foi
muito bom ter esquecido os equipamentos na estreia. Porque percebi que
um bom exame não depende de equipamentos modernos. Existem muitos outros
fatores que interferem no atendimento.