sexta-feira, 24 de maio de 2013

Música na praça

Hoje não contarei causo de consulta. Falarei de um caso de amor com uma cidadezinha que me acolheu como filha. Toda semana, às quintas e sextas rodo trinta quilômetros de estrada e atendo em Palhoça, na grande Florianópolis. Nesta sexta saí de casa sem vontade, agenda vazia, precisando de grana...



Estava lá, desanimada dentro do consultório, com meu anjinho da guarda, Juliana, minha super assistente. De repente uma música invade a sala... Uma música bonita, sertanejo de raiz... Não me contive, fui até a praça em frente saber de onde vinha a música e quem era o artista que de repente encheu o dia de alegria com aquelas melodias: "Ave Maria", "Cuitelinho", "Romaria", "Tocando em frente", "Chalana"... Um caboclo simples, artista de rua, vindo de Aparecida (SP), Leon Guerreiro. Ele viaja com um grupo razoavelmente grande. Conversei rapidamente com alguns integrantes da equipe... A cena me levou para dentro de uma tela de cinema... Lembrei do filme "Gonzaga - de Pai para Filho". Tive vontade de saber mais sobre a vida dessas pessoas que levam arte de sul a norte... Já estavam deixando a cidade, eu também precisava voltar para o consultório...



O mais fantástico era perceber a reação e a expressão das pessoas que por ali passavam: quem estava com passo apressado desacelerava... Uma menininha que não tinha mais de dois anos, sentada no carrinho, embalava a cabeça seguindo o ritmo da música... Um radialista aposentado comprou alguns cds, fez pedido de música, foi atendido... Todos que pediam música eram atendidos! Um loira bonita de meia idade com uma faixa de miçangas na cabeça ganhou elogios e uma canção... Dois dentistas, de roupa branca, também pararam na calçada para escutar. Era impossível ignorar a música - patrimônio cultural de nosso país! Eu precisava registrar esta movimentação na pracinha simpática da cidade onde trabalho.



Uma senhora era a mais animada de todos, cantava junto... Saí do lugar onde estava, sentei ao lado dela, puxei conversa. Rose, cabeleireira, saiu cedo de casa para acompanhar a sobrinha nuns exames de laboratório. Disse que estava com sono e com fome, mas não conseguia sair dali, ficaria até o último momento, curtindo a música: "Isso não acontece todo dia, minha filha! A gente tem que valorizar a cultura da gente! A música é tudo na minha vida! Eu fico toda arrepiada! Sou cabeleireira, mas estudei pra música também, sei tocar violão! E essa música... É tudo! Contagia! Olha, não tem quem não goste!"



Juliana, o meu anjinho, também veio sentar ao meu lado! Até o patrão sentou conosco para escutar! Coisas que só acontecem em cidades que ainda preservam um quê de interior... Aqui em Florianópolis, a minha cidade, que também amo de paixão, isso não acontece mais...



- Bianca Velloso -

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sobre olhos preguiçosos, novas ciências e o preço da saúde




Aos 26 anos ela foi tirar a primeira carteira de motorista e descobriu que não enxergava de um olho. O outro olho, "o bom", precisava de um pouco de grau, por isso a oftalmologista que a atrendeu prescreveu óculos. Chegou até mim porque, depois de um ano, as lentes já estavam muito arranhadas:

- Fiz uma lente boa, mas trabalho como servente, uso muito produto de limpeza, às vezes os óculos embaçam e acabo limpando na roupa mesmo... Isso danificou as lentes... Do olho direito eu não enxergo, a oftalmologista disse que não tem mais jeito, que eu precisaria ter usado tampão até os 7 anos... Eu perguntei até se não haveria cirurgia, ela disse que não, foi taxativa: "O problema que tens é irreversível!" . Perguntei o que eu tinha no olho e ela escreveu num papel: "hipermetropia e astigmatismo", só que eu acho estranho, porque pesquisei na internet e vi que para esses problemas existe cirurgia! No Detran escreveram na minha habilitação "monovisão". O que é isso exatamente?

- Hipermetropia e astigmatismo são dois "problemas visuais" que estão localizados no globo ocular. Se fosse só isso haveria tanto correção óptica quanto cirúrgica.  Acontece que o que tu tens está localizado depois do globo ocular, o problema está na comunicação entre o olho e o cérebro. Popularmente isso é chamado de "olho preguiçoso" ou "olho vago", tecnicamente chamamos de ambliopia. "Monovisão" significa que enxergas apenas com um olho.

- Nossa! Agora falaste uma coisa que faz todo sentido: eu olho para as imagens e até enxergo, mas parece que o cérebro não consegue interpretar aquilo que estou vendo!

Quando ela me disse isso fiquei toda arrepiada. Da mesma forma que a minha fala fez sentido pra ela, a dela me abriu uma janela importantíssima para o entendimento da ambliopia.

Dia desses eu escutei outro relato interessante de um homem que também descobriu ter um olho amblíope quando foi fazer a habilitação - ele usa lente de contato só no "olho ruim" (porque o "bom" não tem grau nenhum):

- Quando estou com a lente e fecho o "olho bom", demora um tempinho até que a imagem que vejo comece a se formar...

Neste caso específico concluo que a lente de contato foi vendida só para que o oftalmologista ganhasse uns trocados, porque na prática ele continua enxergando com apenas um olho.

Juntando essas informações com a leitura que fiz de alguns casos relatados no livro "O Olhar da Mente" de Oliver Sacks, fico imaginando o grande esforço neurológico que que precisa ser feito por quem possui um olho amblíope. Imagino que seja em função deste esforço que o cérebro acaba suprimindo a visão do "olho ruim".

Até pouco tempo acreditava-se que só se conseguiria estimular a visão do olho amblíope até os 7 ou 8 anos de idade. Hoje já é possível recuperar ambliopias até em adultos, através de uma ciência chamada de Optometria Comportamental (ou Neuro Optometria). É algo bem novo no Brasil. Em Florianópolis existe uma clínica especializada, com profissionais formados na Espanha.

Ao saber disso a moça ficou feliz e triste ao mesmo tempo: feliz por saber que existe solução para olhos que veem mas não conseguem enxergar e triste por constatar que dificilmente conseguirá pagar pelo tratamento.
No Brasil a saúde ainda é mercadoria! E mercadoria cara! Tem muita gente ganhando dinheiro com isso! Não é à toa que o Conselho Federal de Medicina quer impedir a entrada de médicos cubanos em nosso país! Infelizmente a Optometria tende a andar pelo mesmo caminho...
De minha parte continuarei lutando contra a mercantilização da saúde... No momento tudo o que posso fazer é ser solidária à dor de quem não pode pagar pelos cuidados que deveriam ser básicos. Estou iniciando o curso de Optometria Comportamental e quero fazer a diferença. Ainda não sei nem onde inicia esta estrada, mas tenho esperança de encontrar gente que me ajude a trilhá-la!

- Bianca Velloso -