terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Atrás dos óculos



Carlos Drummond de Andrade fala no "Poema de sete faces" sobre o "homem atrás dos óculos". Vinícius de Moraes e Toquinho também cantaram este verso em "Um Homem Chamado Alfredo". Triste e bela metáfora, tão verdadeira! Quando se trabalha com a visão, essa imagem das pessoas que se escondem atrás dos óculos fica tão forte que chega a doer.

Ela entrou no consultório sem óculos, num final de manhã, quase tarde. O nome dela era comprido, difícil de dizer, formal demais para quem gosta de olhar para as pessoas bem de perto. Era evidente que ela tinha um apelido carinhoso pelo qual gostava de ser chamada.

- Como eu posso chamar a senhora?

- Pode chamar de Mariquinha mesmo!

- Que bom! E então, Dona Mariquinha, o que traz a senhora aqui, o que está acontecendo com a sua visão?

- Ah, minha filha, meus óculos quebraram! Eu não sei como, quando eu percebi já estavam quebrados! Pra falar a verdade, eu já deveria ter trocado de óculos há tempo! Mas eu não queria! Lá em casa está acontecendo muita coisa, sabe, filha? De vez em quando eu chorava e não queria dizer pra ninguém que estava chorando, então eu dizia que a lágrima escorria por causa dos óculos, que a lente estava muito arranhada, o grau fraco... Faz tempo que meu velho anda doente, com câncer de próstata... Tu és casada, né, filha, sabes como é... Desculpa falar assim, tu és novinha, mas tens cara de mulher casada...

Dona Mariquinha não me dava tempo para responder. E nem eu tinha coragem de cortá-la. Muito mais do que óculos novos ela precisava de alguém que a escutasse. Não sou casada, mas não queria contrariá-la nem desviar o foco da conversa. Assenti gesticulando com a cabeça e deixei que ela prosseguisse. Era uma história bonita. Triste, mas bonita.

- Logo em seguida vieram os problemas de coração... Ele está muito fraquinho! Nós tivemos nove filhos, um Deus levou... E se Deus levou está bem, né? Faz uns quinze dias, eu estava deitada com meu velho, assim de noitinha, de ladinho na cama. Estávamos tranquilos e eu disse para ele que a gente tinha que agradecer porque tinha passado um dia tão gostoso, sem nenhuma incomodação. Depois disso levantei para fazer uma comidinha pro jantar... Quando voltei pro quarto ele estava caído no chão, tinha infartado... Chamei os vizinhos, os filhos, o táxi e fomos para o hospital... Nessa confusão toda perdi os óculos e quando os encontrei, estavam quebrados! Tenho gastado muito de táxi, filha, meu velho está muito fraquinho, não dá para andar de ônibus com ele assim! Ainda bem que o taxista é conhecido e vai colocando na conta! Os óculos eu só posso fazer se for sem entrada! Mas eu estou muito triste, filha! Tenho setenta e três anos, meu velho tem setenta e quatro! A gente sempre se deu muito bem! E agora vê, filha, eu vou ficar viúva, eu sei que a vida dele está chegando ao fim! Vou ficar viúva cedo! Eu não quero ficar viúva cedo!

Que lindo este olhar: aos setenta e três anos Dona Mariquinha acredita que é cedo para ficar viúva! Sempre é cedo demais para quem se despede do grande amor!

- Bianca Velloso -

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